2 OU 3 QUESTÕES
SOBRE O OLHAR[1]
José Márcio Barros [2]
Você já
levou uma criança a uma exposição? Tomara que sim, faz bem para quem leva e é
melhor ainda para quem é levado. Mas se você, mesmo que muito bem intencionado
e armado da mais elástica paciência e atenção, foi logo avisando, na porta do
Museu ou da Galeria, de que ver é só com
os olhos, propondo, então, que seus convidados colocassem as mãozinhas para traz, sinto informar que,
suas intenções foram ótimas, mas você precisa rever suas idéias.
Talvez
pudéssemos começar propondo uma diferenciação entre o VER e o OLHAR. Entre os
dois, não há apenas uma diferença de intensidade, há uma ruptura, um salto. São
posturas diferentes que inauguram “campos de significação diferentes”[3]. O VER
pode ser afirmado como uma atitude involuntária, marcada pela imposição das
coisas sobre o sujeito. Este, ingênua e passivamente, atua como uma espécie de
“detector de metais”, que denuncia a presença de objetos, mas que se manifesta
sonoramente da mesma forma, tanto pela presença de um chaveiro quanto por uma
arma de fogo de um possível seqüestrador de aviões. Ver não exige vontade, basta se colocar à disposição, não exige
espessura ou profundidade, basta o registro espontâneo da superfície visível.
O olhar é outra coisa, pressupõe outra
postura, desencadeia outra relação, exige outro sujeito. Olhar é ir além da visão, rumo à realização de algo intencionado. O
olhar é próprio daqueles que investigam,
que se perguntam. É, pois, algo deliberado, que tensiona a relação do sujeito
com o mundo. No olhar, o sujeito pensa;
no ver, se acomoda.
Não há
outra opção possível, para os que se querem educadores, senão o olhar, ou a visão feita interrogação, mesmo
quando se admira a figura do flaneur,
como decorrência romântica do mundo/cidade moderna.
Dito
desta forma, a experiência do olhar
pode parecer uma clausura da razão, que dilacera de forma abrupta a
espontaneidade e a criatividade do homem para com o mundo. Nada disso. Ser
espontâneo, às vezes confundido com uma incapacidade de perguntar-se sobre o
mundo, é na verdade uma qualidade de responder ao que é conhecido e ao que é
desconhecido, através de registros inconscientes da cultura. Por outro lado, ser
criativo, não é estabelecer uma relação de fricção passiva com as coisas do
mundo, mas a deliberada necessidade de reinventá-las.
O Olhar é, portanto, uma intenção de
descoberta. O OLHAR RESULTA E É RESULTADO
DE NOSSA LEITURA SOBRE O MUNDO. Mas de que leitura falamos? Daquela
reduzida ao texto escrito? Certamente
não. Por leitura devemos entender todo e qualquer desvendamento de estruturas
simbólicas, sejam quais forem as linguagens, os suportes, os meios utilizados e
as mensagens veiculadas. Ler é estabelecer sentido, buscar para além e aquém do
significante, o significado latente, emergente, possível.
E é por
isso que o poeta Moacyr Félix tem razão, ao chamar o homem de pontifex: fazedor de pontos, e ele
próprio ponto. Fazedor de pontes, e ele próprio ponte.[4]
O olhar nada mais é que o resultado de uma
empreitada de desvendamento de quem lê o mundo através da cultura, aqui pensada
no sentido antropológico, como uma lente através da qual o homem atribui
sentido às coisas e a si próprio, como sugere Roque de Barros Laraia[5]. E
aqui nos encontramos frente a frente com alguns desafios.
Se até
aqui falamos de possibilidades, é preciso reconhecer limites que precisam,
intencionalmente, ser superados. Estabelecemos leituras, organizamos nosso olhar, a partir de códigos que nos
estruturam como sujeitos da cultura. Construímos nossa relação com a realidade,
através de valores, regras e normas, que apreendidas no coletivo, definem nossa
identidade, nos dizem quem somos, a que grupo pertencemos. Sofremos assim, de um
centramento perigoso, em nossas próprias verdades. Fazemos da diferença, a
projeção redutora de nossas igualdades. Estranhamos e nos amedrontamos frente
ao que não tem registro em nossa “província de significados”[6]. E
é por isso que costumamos nos recusar ao outro. É por isso que tornamos
inexistente ou invisível tudo aquilo que difere.
Por
isso, o olhar numa perspectiva
antropológica, só se realiza em sua plenitude arqueológica e visionária, se
resultado da relativização. Se resultado da compreensão e desconstrução das
categorias subjetivas e fundantes de nossa visão,
de nosso olhar. Só dessa forma, o
mundo que o olhar inaugura e
reinaugura deixa de ser o recalcitrante reflexo de minhas, e meias, verdades, e
passa a ser a realização do entendimento respeitoso do que há de mais rico no
ser humano: sua capacidade de ser diferente.
Olhar o mundo, através da Antropologia, é
um duplo exercício: primeiro porque exige o reconhecimento das universalidades
e singularidades do ser humano, segundo, porque, não há possibilidade maior de
nos revermos, que através do outro. Mas relativizar, desenvolver um olhar relativizador não é um ato
religioso ou ideológico, apesar de exigir fé e convicção. É antes de tudo uma
postura, ética/conceitual, que se recusa descontextualizar as ações e os gestos
do homem de seus contextos de origem; que recusa uma essência universal do
homem, mesmo que reconhecendo invariáveis de seu comportamento, por acreditar
que tudo é mais uma questão de posição e de relações.
Assim é
o olhar do antropólogo. A superação
da contemplação anestesiada do mundo, mas também a superação do centramento
excludente em suas próprias verdades.
Por isso,
exposições são para ser investigadas, e não apenas vistas. Por isso o mundo e
suas realidades devem ser experimentadas através de nossa sensorialidade,
através de nossa subjetividade, através de nossa razão. Por isso crianças olham
com o corpo inteiro! Por isso o olhar antropológico
se movimenta, procurando familiarizar-se com o exótico e estranhar o que lhe é
familiar. E neste vai e vem, descobrir e buscar compreender a plasticidade
humana, sua complexidade, seus mistérios.
[1] Adaptação livre
do trabalho desenvolvido no Seminário Educação do Olhar, promovido pela
Secretaria de Estado da Educação de MG, em Junho de 1996. Publicado no Caderno
Pensar, Jornal Estado de Minas, 1/11/97.
[2] Antropólogo,
Mestre em Antropologia pela UNICAMP, Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ,
Professor da PUC - Minas e da Escola Guignard – UEMG.
[3] Cardoso, Sérgio,
“O olhar viajante (do etnólogo)”, in O OLHAR, Adauto Novaes (org.), SP, Cia.
Das Letras, 1989.
[4] “Raciocinar é uma
coisa, pensar é outra”, Revista Encontros com a Civilização Brasileira, 3,
1978.
[5] “Cultura um
conceito Antropológico”, Rio, Zahar, 1986.
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