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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Papai não para de tossir.
O que posso fazer por papai?

Jogo fora todos os cigarros?
Exijo que vá ao médico?
Forço conversa civilizada sobre o assunto?
Faço tortura psicológica?
Invento uma chantagem emocional?
Assisto indiferente?

Diante da dura realidade, papai:
Finge estar resfriado e assoa o nariz
Acende um cigarro
Zapeia na tevê entretenimento fácil
Procura não pensar
E acende um cigarro

Sai pra rua
Depois de deixar o dinheiro do almoço
Acende outro cigarro

Volta da rua
Toma um gole de café
Acende mais um cigarro
E liga novamente a tevê
E acende mais um

Come algo que não lhe faz bem
Acende mais um cigarro

Reclama da falta de dinheiro
E acende um cigarro

Reclama da falta de tempo
E acende um cigarro

Tenta uma prosa
Sem sucesso
Acende outro cigarro

Olha pela janela
Brinca com os caninos
Acende mais um

Assiste mais um pouco de tevê
Vai ao banheiro
e acende três, quatro cigarros
enquanto lê jornal sangrento

Tem ilusão de férias
Tem esperança que as coisas vão melhorar
Tem alegria que espera
Pacientemente
Traga rapidamente
Vão-se os dias

E se entristece
Se não encontra saída
Se a vida não lhe sorri
Se anima em silêncio
Diz pra si que a vida já é boa
Que mais há de precisar?
E convicto
Acende cigarro


Conversas triviais
perguntas de todo dia
repetido
vai ver os pais
E acendeu todos os cigarros

Ouve mil alertas todo dia
Pensa que um dia será

E sai para o trabalho
Respira fundo
Pesaroso
Vida árdua
E isso carece de mais um

É tarde,
Papai está de volta
A mesma blusa surrada
Um novo cigarro entre os dedos
Baforadas nervosas
Senta-se em frente à tevê

Vê notícias ruins
tão distantes...
Já não lamenta
Triste realidade
Que aparece jornal

É todo dia a mesma coisa, diz.
Cansado
Acende mais um

Come mais um pouco de comida ruim
Diz novamente não ter tempo

Tenta novamente uma boa prosa
mas diante da dificuldade não rende
Emite então, do alto de sua certeza
opinião mais conversadora e simplista possível
Aceite, ele diz
Deve ser isso mesmo
Não questione.
Se tem que fazer faça
Resigna-se
Conversa encerrada

Acende então outro daqueles
Se volta para a tevê
Olhos fixos na tela
Diverte sem piscar

E mais um café
E mais uma noite
Se deita às três da manhã
Televisão ligada no quarto
Fuma na cama

Papai não para de tossir
Reclama do joelho
Sofro
Não consigo deixar de julgá-lo

Preocupo-me
Não digo nada

Que posso fazer por papai?

Fecho a porta do quarto
Barulho de isqueiro
Papai sai em silêncio
Mas antes
Pergunta pelo dinheiro

Respira profundamente
Sai em silêncio,
E antes
Acende um cigarro.

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